
O percurso da formação científica ainda carrega marcas profundas da desigualdade. Dentre elas, a pesquisadora Mirlene Fátima Simões questiona: e as mulheres que se formam doutoras, pra onde vão?
Mesmo após conquistarem o título de doutorado, elas enfrentam barreiras estruturais que vão desde a precarização das bolsas até a dificuldade de inserção plena no mercado acadêmico.
A cientista social, pesquisadora a nível de pós-doutorado no INCT Caleidoscópio e vinculada ao Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Unicamp, apresentou dados de sua pesquisa durante o 2º Seminário do Observatório Caleidoscópio, no dia 25 de maio de 2025.
O Seminário é uma atividade de extensão e de divulgação científica organizada pela nucleação Sul-Sudeste do Observatório do INCT Caleidoscópio. A pesquisa integra uma série de reflexões sobre as trajetórias acadêmicas das mulheres no Brasil, propondo uma análise crítica da formação científica e da ciência como profissão sob a perspectiva de gênero.
Veja a gravação completa de sua apresentação no canal do Youtube do INCT Caleidoscópio.
Inserção profissional: queda contínua e mercado restrito
A inserção no mercado de trabalho de pessoas com título de doutorado não acompanha o ritmo de crescimento dessa formação acadêmica. Em 2010, 75,8% dos doutores estavam empregados formalmente dois anos após a titulação. Em 2021, esse número caiu para 65%.
Segundo a pesquisadora Mirlene Simões, o país forma cerca de 20 mil doutores por ano, mas oferece apenas 2 mil bolsas de pós-doutorado, um abismo entre formação e oportunidade.
A distribuição geográfica das pessoas com doutorado no Brasil também revela desigualdades profundas. As regiões Sudeste e Sul respondem por mais de 30% da formação nacional, evidenciando uma concentração que não representa saturação, mas sim uma assimetria persistente e a ausência de políticas de incentivo à formação em outras regiões.
Esse cenário é ainda mais crítico quando considerada a questão de gênero. Apesar de serem maioria entre os titulados, as mulheres são minoria nas contratações: a cada cinco contratações, apenas uma é mulher. Mesmo em estados industrializados, as mulheres são minoria nas contratações e na profissionalização científica. Nas empresas de base tecnológica, apenas 30% dos profissionais são mulheres.
Formação mais longa e maternidade invisibilizada
Apesar da formação de doutoras no Brasil ter crescido significativamente nas últimas décadas, esse avanço esconde uma série de desigualdades que comprometem a permanência e a valorização das mulheres no mundo científico.
A média de tempo para a formação de uma doutora no Brasil é de cerca de 10 anos. Comparando com outros países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as brasileiras concluem o doutorado em média 2,1 anos mais tarde que mulheres dos demais países.
Segundo Mirlene, esse tempo prolongado é reflexo das condições desiguais ligadas à parentalidade, já que pesquisas revelam que a criação de um filho afeta mais diretamente o ritmo e a permanência das mulheres na pós-graduação do que dos homens. Essa diferença reflete em perda de tempo produtivo, de inserção no mercado e de oportunidades de liderança.
Por isso, entre os desafios enfrentados por doutoras e recém-doutoras no Brasil está a ausência de políticas públicas que considerem as especificidades que atravessam a carreira das mulheres, como o impacto da maternidade.
Participação científica e liderança
Entre 2002 e 2022, o percentual de mulheres entre os autores de publicações científicas no Brasil cresceu de 38% para 49%. Esse dado coloca o país como o terceiro com maior participação feminina na ciência, atrás apenas de Argentina e Portugal.
No entanto, essa presença não se traduz em poder. Para a pesquisadora, os dados demonstram que a participação feminina diminui conforme a carreira avança, e as mulheres continuam fora dos espaços de liderança e decisão. Além disso, os homens com mestrado ou doutorado recebem salários 29,7% maiores, em média, que as mulheres com a mesma formação.
Permanência, valorização e liderança continuam sendo desafios
A presença cada vez maior das mulheres na ciência brasileira é inegável. Elas já estão lá, se formando, publicando, pesquisando. Mas a permanência, a valorização e a liderança ainda são desafios.
Para isso, a pesquisadora defende que é urgente pensar em políticas públicas específicas, que considerem maternagem, distribuição regional, inserção profissional e equidade salarial. Sem esse acompanhamento, o risco é continuar formando doutoras que não atuam em suas áreas.
Sobre a pesquisadora
Mirlene de Fátima Simões possui graduação em Ciências Sociais (2001), mestrado (2006) e doutorado (2012) pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP Araraquara. Atualmente, realiza o Pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Gênero Pagu – Unicamp, junto ao Observatório Sul Sudeste do INCT Caleidoscópio.
É secretária regional São Paulo da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC (2023-atual), co-líder do CP Gênero e Sexualidade da Sociedade Brasileira de Sociologia – SBS (2024-atual) e membro do comitê de governança de Ciência e Tecnologia de São Carlos.
Coordenou o projeto Mulheres na Ciência em São Carlos/SP, premiado pelo PROAC/SP (2020-2023) e foi consultora da UNESCO e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação do Governo Federal (2024).
Atuou como docente na UFSCar (2018-2019) e na UNESP/FCLAr (2022-2024) e como professora convidada na Fundação Memorial da América Latina (2023). Pesquisa as seguintes temáticas: mulheres jovens, direitos humanos e mulheres, mulheres nas carreiras científicas, políticas públicas para inclusão de mulheres no mundo do trabalho, gestão, inovação e tecnologia social.
