
Nos dias 10 e 11 de junho de 2024, a Universidade de Brasília (UnB) sediou o seminário “Gênero, Raça e Desigualdades: Agendas para o Internacional”, organizado pelo Núcleo de Pesquisa em Gênero, Raça e Diferença na Política Internacional (NUGRAD). Este evento reuniu acadêmicos, representantes governamentais e membros da sociedade civil para discutir questões de gênero e justiça racial, promovendo um diálogo interdisciplinar e intersetorial. O seminário, disponível no canal do Youtube no INCT Caleidoscópio, foi uma plataforma para explorar como as desigualdades de gênero e raça se manifestam no Brasil contemporâneo e são enfrentadas tanto em contextos nacionais quanto internacionais. O foco estava na análise das políticas públicas de gênero e raça, bem como os desafios para sua efetivação.
O evento representou a inauguração do NUGRAD, um núcleo de pesquisadoras e pesquisadores sediado no Instituto de Economia e Relações Internacionais da UFU, vinculado ao Programa de pós-graduação em Relações Internacionais (PPGRI-UFU) e em parceria com o Instituto de Relações Internacionais da UnB. A história desse núcleo começou ainda em 2016 quando um conjunto de pesquisadoras se mobilizou para a construção de um espaço de discussão das pautas de gênero no âmbito da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI).
As Relações Internacionais (RI) são um campo recente, que nos últimos vinte anos viveu a expansão de cursos de graduação e pós-graduação para além das principais capitais do país. Esse processo fez emergir um conjunto de demandas e problemas não dimensionados pelas vertentes clássicas da área. Além disso, soma-se a crescente discussão motivada pelo giro decolonial (Castro-Gómez e Grosfoguel, 2007) e a efervescência dos feminismos na América Latina (Hollanda, 2020). Tais processos geram a institucionalização em 2017 do Grupo de estudos sobre gênero e relações internacionais (GENERI) organizado pelas professoras Lara Selis e Débora Prado na UFU, que contava com a presença de um conjunto de pesquisadoras de diferentes universidades.
No decorrer das pesquisas e processos coletivos de discussão confirmou-se a urgência de discutir o gênero de modo interseccional, correlacionando-o desde uma “práxis-criativa” (Bueno em Collins e Bilge, 2020, p. 11) com as vivências de raça e classe. Uma diversidade de temas exigiu-nos uma perspectiva interseccional: migração, mulheres negras na Amazônia, tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, política externa e gênero, entre tantos outros. Tais agendas exigiram das pesquisadoras um posicionamento político, dentro e fora do campo das RI, seja por meio de publicações, organizações de rodas de conversa e aproximação com mobilizações sociais.
Vale ressaltar que a produção das discussões de gênero e raça nas RI do Brasil é recente, tendo como um dos marcos a publicação do livro “Feminismo, Gênero e Relações Internacionais” (2023). A obra enfatiza a necessidade de incorporar perspectivas interseccionais aos estudos do internacional, argumentando que as desigualdades globais são refletidas e reforçadas pelas estruturas de poder. Thula Pires e Andrea Gill argumentam: “para encarar gênero como pacto político (…)” é preciso explicitar as ordens e privilégios que marcam e orientam a categoria (2023, p.75). Sugerem que gênero deve permanecer em disputa por envolver projetos de futuro que, se não questionados, podem gerar exclusão e violência. Portanto, temas notadamente das RI, como as Operações de Paz das Nações Unidas e impactos sobre mulheres em contextos de conflitos armados, devem ser analisados a fim de gerar questionamentos acerca do eurocentrismo e da branquitude como referências. Do mesmo modo, precisam ser visibilizadas as leituras transnacionais e cotidianas da invisibilização das mulheres negras na docência (Soares e Rosa, 2023) e a atuação política das mulheres indígenas de Abya Yala (Sebastião et. al, 2023). A construção e difusão dessas perspectivas permite uma análise mais engajada, crítica e vivencial das dinâmicas internacionais, desafiando as narrativas dominantes e estimulando práticas de subversão e liberação.
É com esse espírito que o Seminário Gênero, Raça e Desigualdades: Agendas para o Internacional foi organizado. Antes de reunir um conjunto de pesquisadoras de elevado prestígio para tratar de temas relevantes, optou-se por engajar tomadores de decisão, burocracias e ativistas, pessoas de carne e osso, veiculadas cotidianamente com a discussão, organização e efetivação de políticas. A proposta foi aproximar universidades e outros espaços a fim de gerar sinergias, agendas de estudo e propostas compartilhadas de mitigação das violências multidimensionais que afetam a vida de muitas pessoas.
O seminário foi estruturado com perguntas destinadas a orientar as discussões e garantir um foco nas percepções de gênero e raça no campo de atuação das convidadas, triangulando a atuação no Estado, com a Universidade e os Movimentos Sociais. A mesa de abertura, por exemplo, buscou explorar como se dá o diálogo entre a academia e a formulação de políticas públicas em gênero e raça, identificando os desafios e necessidades específicas do cenário brasileiro em comparação com outros países. As palestrantes foram incentivadas a refletir sobre o papel da academia na criação de políticas e como a pesquisa pode orientar ações efetivas. Já nas mesas subsequentes, as perguntas focaram na atuação (inter)nacional das instituições nas agendas de gênero e raça, as principais políticas implementadas para enfrentar desigualdades, e os desafios específicos na construção de políticas de equidade. Essas questões foram apresentadas para estimular uma análise profunda e prática sobre como a academia pode contribuir para a construção de políticas inclusivas e interseccionais, além de promover parcerias de pesquisa e ação conjunta com movimentos sociais. Dessa forma, o seminário visou não apenas uma discussão teórica, mas também a proposição de estratégias para enfrentar as desigualdades estruturais.
Na sequência apresentamos aspectos relevantes do Seminário.
Abertura
A palestra de abertura foi proferida por Berenice Bento, que discutiu o “racismo cordial” e a “homofobia cordial” no Brasil. Segundo ela, o “racismo cordial” é caracterizado por uma convivência aparente entre brancos e negros, desde que os negros se mantenham em posições subalternas. Essa dinâmica é similar no caso da “homofobia cordial”, na qual a aceitação das pessoas LGBTQIAP+ está condicionada à não expressividade de suas identidades em espaços públicos ou de poder. Segundo ela, “a homofobia e o racismo no Brasil são estruturais e estão entranhados nas relações sociais e nas instituições.” Bento argumentou que essas formas de discriminação são mantidas sob a aparência de uma convivência pacífica, desde que as pessoas marginalizadas não ultrapassem determinadas fronteiras sociais. A análise de Bento ilumina as sutis, mas perniciosas, formas de discriminação que perpassam a sociedade brasileira, destacando a necessidade de um confronto direto com essas dinâmicas opressivas.
Bento também discutiu o impacto dessas formas de discriminação na vida das pessoas negras e LGBTQIAP+, utilizando exemplos de casos recentes e dados estatísticos para ilustrar suas argumentações. Ela mencionou que, apesar de avanços legais e institucionais, como a criminalização da homofobia pelo Supremo Tribunal Federal, a violência contra esses grupos continua a ser uma realidade diária. Bento afirmou: “A violência simbólica e física contra negros e LGBTQ+ é uma tentativa de manter a hierarquia racial e heteronormativa intacta.”
Dialogando com seu livro “Abjeção: A construção histórica do racismo”, recém lançado, a palestrante enfatizou a importância de uma abordagem interseccional para compreender e combater essas opressões. Ela argumentou que não se pode tratar o racismo e a homofobia como questões separadas, pois estão intrinsecamente ligados. Berenice Bento destacou a necessidade de políticas públicas que reconheçam e combatam violências de modo interseccional: “Precisamos de políticas que não apenas reconheçam as múltiplas identidades e opressões, mas que também sejam capazes de atuar de forma integrada para promover a verdadeira igualdade”, argumenta a professora e pesquisadora.
Em sua análise, Bento respondeu às perguntas orientadoras do Seminário discutindo a complexidade do racismo “à brasileira” que se institucionaliza a partir de uma fachada de convivência pacífica e criam meios para garantir que negros e pessoas LGBTQIAP+ não ultrapassem fronteiras sociais predeterminadas. Segundo Bento, essas opressões são estruturais e profundamente enraizadas nas relações sociais e nas instituições brasileiras. Ela argumentou que o diálogo entre academia e a formulação de políticas públicas em gênero e raça é crucial para enfrentar essas dinâmicas opressivas, destacando a necessidade de políticas públicas interseccionais que reconheçam e combatam múltiplas identidades e opressões. Bento ressaltou os desafios específicos do cenário brasileiro, onde, apesar de avanços legais, a violência simbólica e física contra grupos marginalizados persiste como um meio de manter hierarquias raciais e heteronormativas intactas. Através de teorias críticas e estudos contemporâneos, Bento ilustrou como a academia pode orientar a pesquisa sobre essas temáticas e colaborar na construção de políticas públicas integradas, capazes de aproximar-se do desejo por igualdade e superação das violências. Assim, a palestra não só iluminou as nuances das discriminações no Brasil, mas também enfatizou a importância de um diálogo contínuo entre academia e burocracias estatais para aprofundar as discussões, estabelecer formas de enfrentamento e os desafios subjacentes.
“Gênero, Raça e Desigualdades na Política Internacional”
Na mesa “Gênero, Raça e Desigualdades na Política Internacional”, participantes como Vanessa Dolce de Faria, Amarilis Busch Tavares, Braulina Baniwa e Ísis Táboas discutiram a representação de mulheres, de mulheres negras e mulheres indígenas nas esferas em posições de liderança nas esferas internacionais, argumentando que uma política externa justa e representativa depende dessa participação. Ela destacou: “A inclusão de mulheres negras em posições de liderança é fundamental para uma política externa mais justa e representativa.” Amarilis Busch Tavares discutiu os desafios na construção de políticas de equidade internacional, enfatizando: “Os desafios enfrentados por esses grupos na política internacional exigem políticas públicas que sejam não apenas inclusivas, mas também interseccionais.” A palestrante abordou em profundidade como o gênero afeta as políticas de migração e refúgio no Brasil e no mundo.
Braulina Baniwa falou desde a perspectiva de uma mulher indígena, destacando barreiras culturais e estruturais que limitam sua participação nos espaços de poder e enfatizando a necessidade de políticas interculturais: “Precisamos de políticas públicas que considerem a diversidade cultural e as especificidades das comunidades indígenas.” Ísis Táboas falou sobre as iniciativas do Ministério das Mulheres, destacando a importância de políticas interseccionais para promover a igualdade: “Precisamos de políticas que não apenas reconheçam as múltiplas identidades e opressões, mas que também sejam capazes de atuar de forma integrada para promover a verdadeira igualdade.”
As participantes da mesa “Gênero, Raça e Desigualdades na Política Internacional” responderam de forma abrangente às perguntas do seminário. Elas abordaram como o diálogo entre academia e a formulação de políticas públicas é essencial para enfrentar as desigualdades de gênero e raça, destacando a necessidade de políticas públicas interseccionais que considerem as múltiplas identidades e opressões. As falas destacaram os desafios específicos do cenário brasileiro e internacional, e como a academia pode contribuir para a construção de políticas mais inclusivas e equitativas, promovendo um diálogo constante e colaborativo entre todos os setores da sociedade.
“Políticas Públicas Globais de Gênero, Raça e Sexualidade”
A mesa “Políticas Públicas Globais de Gênero, Raça e Sexualidade” abordou as políticas públicas construídas atualmente no Brasil, com participação de Dulce Maria Pereira, Paulo Victor Pacheco, Ana Santana, Flávia do Bonsucesso Teixeira e Jane Maria Vilas Bôas. Como atuantes, respectivamente, no Ministério das Mulheres, no Ministério da Igualdade Racial, no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, no Ministério da Saúde e no Ministério do Meio Ambiente, discutiram os avanços e desafios nas políticas de igualdade de gênero e raça. Suas atuações diversas enfatizaram a necessidade de alinhar essas políticas com as agendas globais e interministeriais para enfrentar as desigualdades.
Dulce Maria Pereira iniciou sua fala abordando as iniciativas do Ministério das Mulheres para promover a equidade de gênero. Ela destacou a implementação de programas de apoio a mulheres em situação de vulnerabilidade, enfatizando a importância de políticas públicas interseccionais. Pereira afirmou: “As políticas de igualdade racial devem ser integradas às políticas de gênero para combater eficazmente as desigualdades.” Ela também ressaltou a importância da colaboração com a sociedade civil e ONGs para garantir a eficácia e a responsividade dessas políticas, e mencionou a necessidade de um monitoramento contínuo para avaliar o impacto das ações implementadas.
Paulo Victor Pacheco, representando o Ministério da Igualdade Racial, discutiu os desafios na implementação de políticas de igualdade racial no Brasil. Ele ressaltou que as políticas públicas devem ser adaptadas às especificidades locais e culturais, garantindo uma abordagem inclusiva. Além disso, trouxe também uma das iniciativas mais importantes da atuação do Ministério da Igualdade Racial, o Programa Juventude Negra Viva, orientado ao combate ao racismo e à proteção dos direitos humanos dos jovens negros. Pacheco enfatizou: “Precisamos de políticas que considerem as particularidades de cada grupo, integrando as políticas de igualdade racial às de gênero.”
Ana Santana, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, abordou a importância da educação e da conscientização para combater a discriminação. Ela destacou as iniciativas do ministério em promover campanhas educativas e programas de capacitação, afirmando que “a educação é uma ferramenta essencial para desconstruir preconceitos e promover a inclusão.”
Flávia do Bonsucesso Teixeira, representando o Ministério da Saúde, falou sobre a saúde das mulheres negras e indígenas, destacando a importância de políticas públicas que garantam acesso igualitário aos serviços de saúde. Ela afirmou: “É fundamental que as políticas de saúde sejam inclusivas e considerem as necessidades específicas das mulheres negras e indígenas para garantir um atendimento equitativo.”
Jane Maria Vilas Bôas, do Ministério do Meio Ambiente, discutiu a relação entre justiça ambiental e igualdade de gênero e raça. Ela destacou a importância de incluir as mulheres negras e indígenas na formulação das políticas ambientais, afirmando: “A participação das mulheres negras e indígenas é crucial para a construção de políticas ambientais justas e sustentáveis.”
As pessoas participantes da mesa “Políticas Públicas Globais de Gênero, Raça e Sexualidade” abordaram as perguntas do seminário, destacando a importância do diálogo entre academia e a formulação de políticas públicas para enfrentar as desigualdades de gênero e raça. Elas enfatizaram a necessidade de políticas interseccionais que considerem as múltiplas identidades e opressões e avaliaram os desafios específicos do cenário brasileiro. A contribuição da academia na construção de políticas mais inclusivas e equitativas foi salientada e destacou-se a urgência de um diálogo constante e colaborativo entre todos os setores da sociedade para superar esses desafios.
“Gênero, Raça e Desigualdade nos Movimentos Sociais”
A mesa “Gênero, Raça e Desigualdade nos Movimentos Sociais” apresentou a importância da mobilização social para constituir relações nacionais e internacionais mais equitativas. Contou com a presença do CFEMEA- Centro Feminista de Estudos e Assessoria, da coordenadora de Políticas para mulheres do Ministério dos Povos Indígenas, do Movimento de Mulheres Camponesas e da Comunidade Quilombola Kalunga – Vão de Almas/GO. As participantes compartilharam suas experiências e estratégias de luta, enfatizando a necessidade de uma mobilização contínua e colaborativa.
Guacira de Oliveira começou sua fala destacando a importância dos movimentos sociais na luta por equidade de gênero e raça. Ela ressaltou que os movimentos feministas e antirracistas têm sido cruciais para pressionar por políticas públicas inclusivas. Guacira afirmou: “Os movimentos sociais são fundamentais para a construção de um país mais justo e igualitário. Eles são a voz da resistência contra as desigualdades estruturais.”
Luma Lídia Kamaiurá trouxe a perspectiva das mulheres indígenas, discutindo as barreiras culturais e estruturais que limitam sua participação nos espaços de poder. Ela enfatizou a importância da preservação cultural e da inclusão das mulheres indígenas em todas as esferas de decisão. Luma destacou: “É essencial que as políticas públicas respeitem e incluam as especificidades culturais das comunidades indígenas para garantir uma verdadeira inclusão.”
Adão Fernandes da Cunha abordou os desafios enfrentados pelas comunidades quilombolas na luta por direitos e reconhecimento. Ele ressaltou a importância da mobilização comunitária e da resistência cultural como formas de combate às desigualdades. Adão afirmou: “As comunidades quilombolas têm uma história de resistência e luta, e é através dessa mobilização que conseguimos avançar na conquista de nossos direitos.”
Laura Lyrio discutiu a atuação do Movimento Mulheres Camponesas na promoção da equidade de gênero no campo. Ela destacou a importância da solidariedade entre os movimentos sociais e a necessidade de políticas públicas que atendam às demandas específicas das mulheres camponesas. Laura afirmou: “A luta das mulheres camponesas é uma luta por reconhecimento e dignidade. Precisamos de políticas que atendam às nossas necessidades e respeitem nossas especificidades.”
As participantes da mesa “Gênero, Raça e Desigualdade nos Movimentos Sociais” dialogoram com as diretrizes propostas pelo seminário, destacando a importância da conversa entre academia e movimentos sociais na formulação de políticas públicas. Elas enfatizaram a necessidade de políticas interseccionais que considerem as múltiplas identidades e opressões, e discutiram os desafios específicos do cenário brasileiro, como a presença da extrema-direita em espaços de poder e as lutas cotidianas por acesso à direitos. As falas ressaltaram a importância da mobilização social como uma ferramenta essencial para pressionar o Estado em prol de políticas inclusivas e equitativas, antirracistas e atentas à diversidade de formas de ser mulher e viver o gênero no país.
Encerramento
A universidade, apesar de mais de uma década de sucateamento progressivo, enfrenta a difícil tarefa de continuar produzindo ciência crítica. Na palestra de encerramento do seminário, Eliene Novaes Rocha, presidente da Associação dos Docentes da Universidade de Brasília (ADUnB), destacou a importância da mobilização docente e da greve como instrumento legítimo de luta por melhores condições de trabalho e ensino. Ela ressaltou que a produção de conhecimento crítico deve continuar mesmo em tempos de crise, afirmando: “A greve é um instrumento legítimo de luta por melhores condições de trabalho e ensino, e a produção de conhecimento crítico não pode ser interrompida.” Rocha enfatizou a necessidade de um diálogo constante entre academia e governo para co-construir políticas públicas que promovam justiça social e inclusão, destacando os desafios enfrentados pela universidade em tempos de austeridade e ataques à autonomia.
A fala de Eliene Novaes Rocha abordou as perguntas-guia do seminário ao destacar a importância do diálogo contínuo entre academia, governo e sociedade na formulação de políticas públicas. Discutiu a crise da educação e como o sucateamento das Universidades atrapalha o processo de efetivação de laços e trocas com outros atores sociais. Rocha ressaltou que a mobilização social e a produção de conhecimento crítico são essenciais para enfrentar as desigualdades estruturais, promovendo um diálogo colaborativo para a construção de políticas públicas interseccionais.
Avaliação
As contribuições do Seminário ao campo das RI no Brasil incluem a incorporação de perspectivas de gênero e raça nas análises internacionais, promovendo uma visão mais abrangente das dinâmicas globais. A percepção de que as violências atuam de forma contínua e atravessam as fronteiras nacionais, é uma dimensão relevante de análise. Além disso, percebeu-se que a interseccionalidade, como conceito, está bastante disseminada entre os diferentes setores que participaram das mesas de debate. Em coro revelou-se a importância de trabalho transversal, integrado e atento aos sistemas de poder e seus modos de coalização. A questão a ser aprofundada é como tal empreendimento será realizado.
As instituições, sejam elas educacionais ou ministeriais, seguem amarradas por operações específicas e dependentes de protagonismos pessoais que enfrentam grande dificuldade de institucionalização das demandas de grupos vulneráveis. Diferente do governo anterior, as demandas sociais são em alguma medida balizadas (ou retomadas) a partir de 2023. Todavia, a lentidão da burocracia está em descompasso com a urgência de vivências violentadas. Por isso, o Seminário apresenta apenas um dar-se conta das possibilidades de interação entre diferentes atores e atrizes sociais, cada qual enfrentando em seus espaços de trabalho e articulação, às micrológicas de poder que perpetuam as estruturas de dominação.
Além disso, a diversidade de palestrantes sinaliza que Estado e Universidade não são uma “caixa-preta”, mas espaços no qual uma série de interesses e disputas são protagonizadas. A escolha por essas palestras e temas deveu-se ao desejo da organização em manifestar a existência e comunicar a importância de análises interseccionais nos diferentes campos da vida. Com isso, representantes de movimentos sociais são contundentes ao apontar que algo vem sendo feito nos últimos dois anos, mas há muito ainda a ser realizado. Há ainda um hiato entre o tempo das políticas governamentais, as pesquisas acadêmicas e as respostas exigidas por uma multiplicidade de grupos sociais marginalizados. Segue o desafio apresentado por Berenice Bento acerca da necessidade de cruzar as “linhas abissais” do racismo e da homofobia para promover a igualdade.
Nesse contexto, o INCT Caleidoscópio e seus objetivos sinalizam uma possibilidade de reflexão, diálogo e construção de agendas de estudo conectadas com as demandas sociais e governamentais. Ao refletir que pesquisas, políticas e demandas são realizadas por pessoas de carne e osso, a integração de enfoques interseccionais no campo das RI ganha novo fôlego. Desafiar abordagens eurocêntricas, promover uma compreensão mais holística e contextualizada dos fenômenos globais, envolve um trabalho cotidiano de articulação política entre diferentes setores sociais.
O seminário, realizado de forma remota e com diversas parcerias, demonstrou a capacidade da academia em se adaptar e continuar promovendo debates críticos, mesmo em tempos de crise. A adaptação para um formato virtual ampliou o alcance do seminário, permitindo uma participação mais diversificada e inclusiva.Fica o desafio de investigar mais profundamente as interseccionalidades e de mobilizar políticas públicas de igualdade de gênero, superação da branquitude e respeito à diversidade. Estudos futuros devem focar em como essas dinâmicas operam em diferentes contextos e escalas, tanto nacionais quanto internacionais. A interdisciplinaridade e a colaboração entre diferentes áreas de conhecimento são essenciais para avançar nessas operações, por isso o INCT é um espaço importante de articulação. As reflexões e propostas apresentadas durante o seminário não só enriquecem o campo das Relações Internacionais, mas também têm o potencial de divulgação e aproximação da comunidade acadêmica com a formulação de políticas públicas e a mobilização social por igualdade e justiça.
Referências Bibliográficas
Bueno, W. (2020). Em P. H. Collins & S. Bilge, Interseccionalidade (p. 11). Tradução de Rane Souza. São Paulo: Boitempo Editorial. ISBN: 978-65-5717-051-9.
Buarque de Hollanda, H. (2020). Pensamento feminista hoje: Perspectivas decoloniais. Bazar do Tempo.
Castro-Gómez, S., y Grosfoguel, R. (2007). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar.
de Souza, Barasuol, & Zanella (Orgs.), Feminismo, Gênero e Relações Internacionais. Fino Traço Editora. ISBN: 978-85-8054-615-6.
Pires, T., & Gill, A. (2023). Racializando o gênero: repensando a interseccionalidade para além da lógica identitária. In N. M. F. de Souza, F. B. Barasuol, & C. K. Zanella (Orgs.), Feminismo, Gênero e Relações Internacionais (pp. 51-78). Fino Traço Editora. ISBN: 978-85-8054-615-6.
Sebastião, L. L., Veron, V., Paredes Carvajal, J., & Maso, T. F. (2023). Epistemes indígenas e descolonização: corpos que sabem, corpos que resistem. In N. M. F. de Souza, F. B. Barasuol, & C. K. Zanella (Orgs.), Feminismo, Gênero e Relações Internacionais (pp. 331-356). Fino Traço Editora. ISBN: 978-85-8054-615-6.
Soares, L. A., & Rosa, M. A. (2023). “Je Suis Ici, ainda que não queiram”: a inviabilização da mulher negra como docente de Relações Internacionais no Brasil. In N. M. F. de Souza, F. B. Barasuol, & C. K. Zanella (Orgs.), Feminismo, Gênero e Relações Internacionais (pp. 291-316). Fino Traço Editora. ISBN: 978-85-8054-615-6.

Tchella Maso é Pesquisadora e educadora feminista. Atualmente, é professora na Universidade de Brasília; doutora em Estudos Feministas e de Gênero pela Universidade do País Basco (UPV/EHU) e coordena a Rede “Povos Indígenas, Gênero e Sexualidades”. Sua pesquisa e atuação concentram-se em temas como feminismos, gênero, sexualidades, interseccionalidades, corpos, afetos, espiritualidades e pós-secularismo, com uma forte ênfase na análise crítica das dinâmicas de poder e agência no contexto da política global.

Débora Figueiredo Mendonça do Prado é Doutora em Ciência Política pela Unicamp. Possui pós-doutorado pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). É docente no curso de graduação e pós-graduação em Relações Internacionais na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) e do Núcleo de Estudos sobre Gênero, Raça e Diferença (NUGRAD). Também integra a equipe do podcast Chutando a Escada (CaE).

Lara Selis é Professora Adjunta no curso de graduação e no Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). É coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Gênero, Raça e Diferença na Política Internacional (NUGRAD), compõe a equipe editorial da International Feminist Journal of Politics (IFJP) e foi uma das fundadoras da rede MulheRIs. Tem interesse em abordagens críticas sobre poder e resistência, com foco nas perspectivas pós-coloniais e feministas, com aberturas para o diálogo teórico com a psicanálise. Suas pesquisas recentes envolvem análises sobre Política Externa, Gênero e Desigualdades; Ativismos transnacionais e Movimentos neoconservadores. No momento, está cedida para o Ministério das Mulheres, atuando junto a assessoria internacional do Grupo de Empoderamento de Mulheres do G20.

Vinícius Santiago é doutor em Relações Internacionais pela PUC-Rio e é, atualmente, professor no Instituto de Relações Internacionais da UnB, na área de estudos de gênero, raça e estudos afrocentrados. Foi pesquisador associado ao Centre for Feminist Research da York University, no Canadá. É membro do Laboratório de Estudos Afrocentrados em Relações Internacionais da UnB e, atualmente, realiza pesquisa de pós-doutorado em Sociologia na UnB. Sua agenda de pesquisa se centra em estudos de gênero, raça e violência de Estado. Atuou em pesquisas qualitativas sobre segurança pública, mobilidade urbana e direito à cidade no Complexo do Alemão. É pesquisador do NUGRAD – Núcleo de Pesquisa em Gênero, Raça e Diferença na Política Internacional. Seus principais interesses de pesquisa são Feminismos Negro e Interseccional, Estudos de Gênero, Raça e Violência de Estado, Narrativas Autobiográficas e Autoetnográficas, Filosofia Política, Antropologia Política e Antropologia Periférica.