
Entre os meses de fevereiro e abril de 2025, tive a oportunidade de desenvolver uma pesquisa de campo na Universidad de Buenos Aires (UBA), na Argentina, para conhecer as políticas de prevenção e enfrentamento às violências de gênero aplicadas na Instituição. Atualmente, sou pós-doutoranda do INCT Caleidoscópio, pesquisadora vinculada ao Observatório Caleidoscópio – coordenação Sul-Sudeste, ao Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH/UFSC) e ao Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
O projeto foi contemplado pela Chamada Pública MCTI/CNPq nº 16/2024 – Apoio a Projetos Internacionais de Pesquisa Científica, Tecnológica e de Inovação (Faixa 3: Projeto individual para bolsista Pós-Doutorado Júnior ou Pós-Doutorado Sênior do CNPq), com Bolsa de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação no Exterior Sênior – DES, e intitulou-se “Mecanismos de enfrentamento ao assédio e outras violências nas universidades: processos de implementação, avanços e desafios na Argentina e no Brasil”.
A chamada teve período de inscrições entre 20/06/2024 e 09/08/2024, com resultado publicado em dezembro de 2024, e selecionou pesquisadoras/es que estivessem com bolsa de pós-doutorado ativa no país e que pudessem realizar um projeto de internacionalização, com colaboração com outro grupo de pesquisa do exterior. O objetivo da Faixa 3 foi estimular a cooperação internacional e apoiar no desenvolvimento de lideranças.
Como parte de meu trabalho de pesquisa desenvolvido junto ao Observatório Caleidoscópio, nucleação Sul-Sudeste, que integra o Instituto de Estudos Avançados em Iniquidades, Desigualdades e Violências de Gênero e Sexualidade e suas Múltiplas Insurgências (INCT-Caleidoscópio), é meu interesse conhecer e analisar as políticas e os equipamentos criados nas instituições de ensino superior (IES) para prevenir e enfrentar as violências de gênero e interseccionalidade no cotidiano da vida acadêmica.
Tais políticas são fundamentais para a permanência e o desenvolvimento científico pleno de pessoas pertencentes a grupos historicamente minorizados, como é o caso das mulheres, pessoas LGBTQIAPN+, pessoas com deficiência, negras, indígenas, quilombolas, entre outras nas universidades e na carreira acadêmica. Como parte de uma sociedade que exclui e oprime esses grupos, as universidades também são espaços onde a misoginia, o sexismo, a LGBTQIAPN+fobia, o racismo, o capacitismo e outras violências se manifestam e perpetuam
Dessa forma, aproveitando a oportunidade da Chamada Pública MCTI/CNPq nº 16/2024, inscrevi um projeto cujo objetivo foi conhecer e comparar a instituição de mecanismos e políticas de enfrentamento às violências em duas universidades do Cone-Sul latino-americano: a Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil) e a Universidad de Buenos Aires (Argentina).
Como minha atuação enquanto pesquisadora tem sido na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a Bolsa DES foi direcionada a visitar os espaços físicos e entrevistar as pessoas responsáveis pela implementação do Protocolo de acción institucional para la prevención e intervención ante situaciones de violencia o discriminación de género u orientación sexual em diferentes Faculdades da Universidad de Buenos Aires.
Em minha concepção, os aprendizados sobre os processos de implementação e funcionamento das políticas de enfrentamento às violências na Universidad de Buenos Aires podem, numa perspectiva comparativa e de troca de saberes, auxiliar a refletir e propor melhores práticas e abordagens para este que é um desafio histórico em ambos os países.
A oportunidade de pesquisa na UBA tem relevância direta para os objetivos do INCT Caleidoscópio, sendo um deles o levantamento e o mapeamento de boas práticas de enfrentamento às múltiplas formas de violências (de gênero, raça, classe, sexualidade, entre outras) nas universidades.

Três meses de trabalho de campo: aprendizados e articulações possíveis
Embora curto, o período de pesquisa na Universidad de Buenos Aires foi profícuo para os objetivos propostos no projeto. Durante os três meses, foi possível conhecer e mapear pessoas-chave à frente das Unidades de Gênero, Comissões, Departamentos ou Sub-secretarias responsáveis por tornar realidade o Protocolo de acción institucional para la prevención e intervención ante situaciones de violencia o discriminación de género u orientación sexual (mais conhecido como Protocolo de Gênero) nas diferentes Faculdades da UBA.
Elaborado e publicado em 2015 (Res. CS N° 40443/15), o Protocolo de Gênero teve uma atualização em 2019 (Res. CS N° 1918/19) e demorou alguns anos para ser implementado em várias das Faculdades da UBA.
Com uma estrutura descentralizada, cada Faculdade é autônoma e teve processos distintos de implementação do que recomendava o Protocolo, cujo objetivo é “a promoção de ações de sensibilização, difusão e formação sobre a problemática de gênero, assim como o fomento e favorecimento de ações que eliminem a violência de gênero, assédio sexual e discriminação por razões de gênero ou orientação sexual em todas as Unidades Acadêmicas (UNIVERSIDAD DE BUENOS AIRES, 2019, p. 1, tradução nossa, grifos nossos).
Assim, as Faculdades se organizaram e estruturaram de formas distintas para a aplicação do Protocolo. Entre os anos de 2017 e 2019, quatro delas realizaram pesquisas com a comunidade acadêmica para tentar identificar a incidência e identificação das violências, discriminações e assédios entre estudantes, docentes, técnicos administrativos e demais membras/os de cada uma dessas Faculdades. A sistematização dessas pesquisas e os resultados foram publicados no livro “Reconocer para transformar: primeros diagnósticos sobre situaciones de violencia de género en la Universidad de Buenos Aires” (OBERTI; SPATARO; AZPARREN, 2021).
Com base neste material e em outros já publicados, iniciei a “entrada no campo” ainda antes de a Universidad de Buenos Aires retornar das férias de verão. Lendo as publicações e entrando nos sites de cada uma das Unidades Acadêmicas, pude perceber a diversidade que eu poderia encontrar na pesquisa.
Enquanto algumas Faculdades tinham realizado pesquisas ainda nos primeiros anos de implementação do Protocolo, e criado estruturas mais robustas de acolhimento de vítimas, encaminhamento de denúncias e ações de prevenção, outras, dez anos depois da publicação do Protocolo, ainda não tinham informações claras e suficientes sobre o que realizavam para a aplicação do mesmo em sua página institucional on-line.
A dificuldade de encontrar informações nos sites das universidades é, inclusive, um dos temas de minha pesquisa realizada junto ao Observatório Sul-Sudeste do INCT Caleidoscópio, que tem mapeado as iniciativas das universidades do Sul e do Sudeste brasileiros com base nas informações disponíveis nos sites institucionais. Essa pesquisa, que está em fase de análise, escrita e publicação, está sendo desenvolvida com a colaboração de Pedro Ordones, bolsista de Iniciação Científica.
Assim, antes mesmo de agendar as entrevistas e enquanto esperava retorno dos e-mails enviados para cada endereço disponível no site da UBA (no endereço consta a listagem de todas as Unidades Acadêmicas da UBA e os endereços de e-mail da instância responsável pela aplicação do Protocolo de Gênero em cada uma. Foi a partir desses e-mails que entrei em contato e solicitei as entrevistas), já consegui perceber que a análise comparativa entre duas universidades era mais complexa do que eu previa, sendo, antes, necessário comparar e compreender as diferenças na aplicação do Protocolo dentro da própria UBA.
Por fim, ao final dos três meses, consegui realizar visitas e entrevistas com pessoas responsáveis pela aplicação do Protocolo em cinco Unidades, sendo elas: Facultad de Letras y Filosofía, Facultad de Ciencias Exactas y Naturales, Facultad de Arquitectura, Diseño y Urbanismo, Facultad de Medicina e Facultad de Derecho, totalizando sete entrevistas. No momento, aguardo a confirmação de duas entrevistas que, por motivos de agenda, ficaram para maio, quando o período de campo na UBA já havia terminado.
Além da pesquisa de campo, também tive a oportunidade de participar de uma aula na disciplina de “Violência, sexismo e direitos humanos”, no Curso de Sociologia da UBA, onde fiz uma apresentação das legislações e políticas voltadas ao enfrentamento das violências de gênero no Brasil, trocando experiências com o que existe na Argentina. Agradeço às professoras Alejandra Oberti e Claudia Bacci pelo convite e por viabilizarem essa participação.

Resultados e o fortalecimento de redes internacionais
O projeto, encerrado em 30 de abril de 2025, terá como resultados um artigo comparando as experiências da UBA com a Universidade Federal de Santa Catarina, além de um episódio de podcast do Universidade Livre de Assédio e de outros materiais de divulgação sobre a pesquisa.
Além da publicação dos resultados, prevista para maio e junho, o mais interessante desse período de pesquisa na Argentina foi a possibilidade de conhecer as pessoas vinculadas às políticas na UBA, trocar conhecimentos e convidar para que se aproximem e integrem o Observatório do INCT Caleidoscópio.
O tema do assédio nas universidades e as desigualdades de gênero na Ciência tem tido cada vez mais destaque na última década. No entanto, com as mudanças de governo e o avanço da extrema-direita a nível mundial, é perceptível o receio de retrocessos nas políticas já implementadas em universidades em várias partes do mundo, como é o caso dos Estados Unidos e da Argentina. Por isso, a articulação entre pesquisadoras e gestoras à frente das políticas afirmativas e de gênero é muito importante para fortalecer processos de resistência e avanços. Nesse sentido, o INCT Caleidoscópio tem um grande potencial de viabilizar essas articulações interinstitucionais e internacionais.
Cooperação fortalece o trabalho coletivo entre brasileiras e argentinas
A execução do projeto teve supervisão da pesquisadora Joana Maria Pedro (LEGH/UFSC), que é uma das coordenadoras do Observatório Caleidoscópio, Nucleação Sul-Sudeste do INCT, e também das pesquisadoras Alejandra Oberti e Claudia Bacci, do Grupo de Estudios sobre Feminismos en América Latina (GEFAL) do Instituto de Estudios de América Latina y el Caribe (IEALC) da UBA.
A cooperação entre essas duas universidades e seus respectivos núcleos de pesquisa representa a continuidade de um trabalho coletivo histórico que tem se dado na produção de conhecimento científico na área dos Estudos de Gênero e Feminismos. A atuação conjunta entre as pesquisadoras do Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH/UFSC) e as pesquisadoras argentinas Alejandra Oberti e Claudia Bacci data de 2009, e tem se aprofundado nos últimos anos em projetos como: “A internet como campo de disputas pela igualdade de gênero” (2021-2023), e “Misoginia: gênero, emoções e política nas redes sociais no Brasil contemporâneo” (2024-atual), ambos coordenados pela professora Dra. Cristina Scheibe Wolff.
Além destes projetos sediados na UFSC, nós, pesquisadoras do LEGH, também atuamos em projetos sediados na UBA, em cooperação, como o Grupo de Trabalho do Conselho Latino-americano de Ciência Sociais (Clacso) intitulado “Red de Género, Feminismos y Memorias”. Este grupo propôs à Clacso, em 2024, o projeto de pesquisa: “Violencia política de género, antifeminismo y misoginia en internet. Expresiones locales de un fenómeno global (Argentina y Brasil)”, que está em processo de finalização.
Como um dos eixos fundamentais do INCT Caleidoscópio, este período de internacionalização da pesquisa na Argentina contribuiu para o fortalecimento dos “Nós e Redes” de pesquisadoras feministas engajadas na transformação das suas universidades e da sociedade como um todo.

Referências Bibliográficas
OBERTI, Alejandra; SPATARO, Carolina; AZPARREN, Ana Laura. Reconocer para transformar: primeros diagnósticos sobre situaciones de violencia de género en la Universidad de Buenos Aires. Subsecretaría de Políticas de Género y la Subsecretaría de Gestión Institucional de la Facultad de Ciencias Sociales de la Universidad de Buenos Aires, 2021.
UNIVERSIDAD DE BUENOS AIRES. Resolución Nº 1918/2019. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1gLADxIrHwR-mgm2aHH6ocOaxtAWUWlzH/view

Morgani Guzzo é Pós-doutoranda do INCT Caleidoscópio. Doutora em Ciências Humanas pelo Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGICH/UFSC), mestre em Letras pela Universidade Estadual do Centro Oeste (Unicentro-PR), e graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela mesma Universidade (2010).
