Conteúdo principal Menu principal Rodapé
Jaqueline Gomes de Jesus e Inara Fonseca durante conversa via videoconferência. Imagem: Inara Fonseca

Com uma trajetória marcada por pioneirismo, resistência e produção intelectual, Jaqueline Gomes de Jesus é uma das vozes mais importantes do ativismo pelos direitos das pessoas trans no Brasil. Psicóloga, professora, pesquisadora e escritora, ela fez história ao se tornar a primeira mulher trans a receber o Prêmio Bertha Lutz, concedido pelo Senado Federal a mulheres que se destacam na luta pela igualdade de gênero.

Nesta conversa, Jaqueline fala um pouco sobre sua caminhada pessoal, a importância de políticas afirmativas para a população trans e como a convivência pode ser uma ferramenta de transformação social.

“Eu elaboro na prática a minha visão de que o mais importante, e é uma perspectiva psicossocial mesmo das ações afirmativas, não é só a justiça social, mas é sobretudo uma coisa muito básica em termos psicossociais que é forçar a convivência. Porque forçar essa convivência é uma forma de diminuir as distâncias. As distâncias não são só físicas. Elas estão no imaginário, no afeto. Quando você é obrigada a conviver, você é obrigada a repensar e a reviver aqueles estereótipos que você tinha sobre as pessoas”, explica Jaqueline.

Além disso, ela também aborda sobre o dia histórico em que recebeu o Prêmio Bertha Lutz e sobre o seu livro “Transfeminismo: Teorias e Práticas”, obra que se tornou referência nos debates sobre gênero, interseccionalidade e justiça social.

Confira!

Jaqueline Gomes de Jesus na inauguração da sede física do INCT Caleidoscópio na UnB. Imagem: Arquivo pessoal da entrevistada.

Inara Fonseca: Jaqueline, pra começarmos esse papo, você pode contar um pouco sobre a sua trajetória, tanto pessoal quanto acadêmica?

Jaqueline Gomes de Jesus: Eu nasci em Brasília, em 1978. Sou filha de uma professora, minha mãe foi a primeira pessoa da família a entrar na universidade, ela foi uma das primeiras professoras da época, no Brasil, que tinha o nível superior. Que estudaram, né? Fizeram academia, porque em geral as professoras eram normalistas. Meu pai é operador de computador. Ele é aposentado, minha mãe faleceu quando eu tinha 19 anos. Então, eu tenho uma experiência muito grande com a educação desde pequena, né? Sempre convivi em sala de aula. Sempre tive essa experiência, esse contato com a educação. Minha família é uma família migrante. Minha família materna mudou de Minas para construir Brasília, meu pai se mudou de Sergipe para Brasília. Então, tem esse aspecto na migração na nossa história. Nasci em Brasília, cresci na periferia de Brasília, no setor da Ceilândia. Minha base eu resumiria nisso.

Inara Fonseca: A tua trajetória, infelizmente, é uma exceção quando a gente olha a realidade da população trans e negra. O que você acha que fez diferença no teu caminho? Foram políticas públicas de acesso e permanência? Apoio da família?

Jaqueline Gomes de Jesus: Sim, o meu caso é muito diferente da trajetória de tantas outras pessoas, né? E por várias questões, a minha família tem uma história, isso é uma coisa muito boa, de aprendizado com essas situações de racismo, a gente tem uma experiência de ser negra há séculos, né? Quando fiz a árvore genealógica da minha família eu estava na graduação. E os documentos que eu peguei do lado materno em Santo Antônio, Minas, mostram que no século XIX eles já eram retratados como família de mulatos. Então, o que eu interpretei é que a família já tem uma experiência muito grande de criar estratégias de resistência. Eu já sabia desde a infância, minha mãe sempre me falava para tomar alguns cuidados com relação à aparência. Para ela ascender teve que se sujeitar a muitas situações, como alisar o cabelo. Hoje as pessoas podem achar estranho, mas era estratégia daquele período. Também tem o ponto da formação da educação. Minha família sempre entendeu que a educação era fundamental. Principalmente porque a gente vem de origem periférica, né? A gente não é herdeiro, não tem outro caminho. E o carinho, o cuidado da família, minha família sempre cuidou muito de mim, se preocupou muito. Eu acho que o apoio da família foi fundamental em tudo. Então, no meu caso é isso.

Inara Fonseca: No INCT Caleidoscópio nós debatemos e pesquisamos sobre a universidade que a gente sonha, mais justa, mais diversa, mais equitativa… Queria te perguntar: que tipo de universidade você acredita?

Jaqueline Gomes de Jesus: Eu tenho um capítulo de livro nesse sentido, que foi fruto de uma palestra que dei numa conferência e esse capítulo se chama “As guerras de pensamento não ocorrerão nas Universidades”. E também uma outra reflexão que eu fiz, muito baseado no que eu penso sobre a psicologia das oprimidas. O que acontece? Eu te diria assim, resumindo um pouco esse pensamento. Eu acho que a gente dá muita importância a universidade. E é importante, sim, pensar na universidade, tá? Mas eu acho que, nesse espaço, a gente perde um pouco a compreensão de que a universidade não vai resolver tudo. Ela é importante, ela é necessária, mas ela não é suficiente. Eu não sei o tipo de universidade que eu gostaria, eu sei que eu gostaria que a gente faça uma meta de inclusão, de valorização, de democratização – que é, resumindo, difícil no modelo de universidade que nós temos, que é apoiada na ideia de meritocracia. Porque a universidade atual está ligada ao fato de que esse recurso é escasso e que por várias razões, não só por vocação ou por interesse, nem todo mundo vai querer estar nesse lugar e não tem que estar. É isso que eu quero dizer. A gente produz conhecimento em todo lugar que o ser humano está, por diferentes métodos. No caso da universidade, a proposta é que seja da perspectiva científica, né? É. Mas a gente tem outros modelos, espaços de pensamento e produção, fundações, institutos. E temos que aproveitar mais. Acho que está mal aproveitado. É importante, é necessário que a gente se abra mais, tenha mais abertura, mas não cair numa ilusão de uma falsa democracia, de uma falsa abertura total, porque vai ser impossível. Eu estou sempre trabalhando, para que a gente tenha mais mais inclusão e que possamos potencializar aquilo que é possível, seja na universidade, seja no Instituto Federal, seja onde há uma uma instituição cuja função é maximizar esses recursos que nós usamos para a produção de conhecimento científico, artístico. Enfim, a gente precisa construir esses saberes também em outros lugares, não só na universidade.

Inara Fonseca: Em alguns dos seus trabalhos, você destaca que as ações afirmativas não são só sobre justiça social, mas também sobre como a convivência transforma o jeito que a gente pensa. Queria te ouvir mais sobre isso, como você enxerga essa mudança no cotidiano?

Jaqueline Gomes de Jesus: Claro, eu tenho um artigo sobre isso e a ideia da do desafio da convivência é o que move esse artigo que fala da minha experiência lá na gestão das cotas. Que é isso, a gestão da convivência. Eu elaboro na prática a minha visão de que o mais importante, e é uma perspectiva psicossocial mesmo das ações afirmativas, não é só a justiça social, mas é sobretudo uma coisa muito básica em termos psicossociais que é forçar a convivência. Porque forçar essa convivência é uma forma de diminuir as distâncias. As distâncias não são só físicas. Elas estão no imaginário, no afeto. Quando você é obrigada a conviver, você é obrigada a repensar e a reviver aqueles estereótipos que você tinha sobre as pessoas. Principalmente quando há uma gestão, porque a gestão vai maximizar isso. Vai ajudar a pessoa repensar sobre a relação com aquela pessoa e um pouquinho sobre o grupo que a pessoa faz parte, quando é um grupo que ela não convive ou ou é um grupo historicamente discriminado. Mas é preciso uma gestão. Agora, sem essa convivência, que é ação afirmativa que faz, principalmente as cotas, não tem como fazer a gestão. No artigo, eu explico como foi a experiência lá na UNB de receber novos estudantes, milhares, sendo que havia uma ou outra pessoa negra e de repente são centenas, são milhares. Como trabalhar essa gestão? Como foi essa experiência naquele contexto? Porque, para mim, o fundamental para poder ver as mudanças futuras, é que de fato as pessoas comecem com o fortalecimento da sua empatia. Se elas não tiverem empatia, não vão ter solidariedade. E aí a solidariedade vai ser só um discurso em nível social, em nível institucional. Isso é só um discurso, só algo escrito, prescrito, um texto. Então, essa convivência, ela é extraordinária, ela é fundamental. Não vai resolver tudo, mas sem ela a gente não consegue aproximar as pessoas para poder fazer uma gestão que no fim permita a inclusão. Sem ela não tem inclusão, que a inclusão, bem resumidamente, é a ideia de que todo mundo vai poder contribuir para o resultado final daquela organização, daquela instituição, sem se preocuparem muito em ficar protegendo sua identidade a toda hora de ataques. Elas vão poder contribuir e a gente vai ter uma equipe que é mais criativa, que traz resultados melhores a médio e longo prazo.

Inara Fonseca: Neste ano, a implementação de políticas afirmativas para pessoas trans na Unicamp tem gerado bastante resistência. Na tua visão, de que forma as cotas nas universidades públicas podem fortalecer a luta por mais equidade de direitos para população trans?

Jaqueline Gomes de Jesus: As cotas para pessoas trans são fundamentais na luta por equidade, porque elas abrem o acesso para que pessoas que, em geral, não estão dentro da universidade ou não são vistas lá, como as pessoas trans, sejam visíveis e que a partir dessa convivência haja uma mudança da cultura. Para mim em particular, pela minha leitura da questão psicossocial, o mais importante é a convivência que possibilita uma transformação na cultura para que a gente possa começar uma gestão com foco na inclusão. As cotas sozinhas, elas não trazem a inclusão, mas elas permitem que a gente comece a trabalhar pela inclusão e mude o imaginário social, que em especial para as pessoas trans ainda está muito ligada a uma naturalização da marginalidade e da exclusão

Inara Fonseca: Neste ano, você foi a primeira mulher trans a receber o Prêmio Bertha Lutz. Um marco! Qual importância individual e para luta coletiva de você ter recebido o prêmio?

Jaqueline Gomes de Jesus: Nossa, foi histórico! Foi muito importante ter sido a primeira a receber aquela medalha. Uma coisa que eu queria destacar é que uma das senadoras disse que todas as senadoras e senadores apoiaram as indicações das senadoras. Porque o diploma é uma concessão do Senado. As senadoras podem indicar, mas todos têm que votar e a bancada feminina em peso aprovou. Todas as indicadas pelas senadoras foram apoiadas. Eu achei fantástico. Ao mesmo tempo, que é interessante, porque eu acho que mostra que a gente avançou no sentido de um consenso, de algum nível, no Senado com relação a posições das mulheres, das senadoras. Entretanto, a senadora que falou, se eu não me engano foi a Soraya Thronicke, comentou que em geral ela tinha que parabenizar por toda a bancada ter apoiado e concordado, porém ela lamentava que em outras pautas não havia esse consenso. Por exemplo, quando elas trouxeram a pauta das cotas para mulheres na política, porque hoje a gente tem a reserva de vagas da nominata, na indicação dos partidos e não nos cargos públicos, quando elas trouxeram os parlamentares, inclusive algumas das senadoras que estavam ali, não apoiaram. Não apoiaram as cotas para mulheres. O argumento delas é que elas são contra cotas. Não importa quem, não queremos isso. Porque tem um imaginário negativo sobre ações afirmativas e mesmo que seja para mulheres e elas saibam que as mulheres precisam dessa inclusão. Então, o que que eu entendi? Falar de gênero, raça, sexualidade, falar da diversidade humana já é algo possível. Agora, pensar em efetivar essa inclusão ainda não é consenso.

Jaqueline recebendo o Prêmio Bertha Lutz. Foto: Saulo Cruz/Agência Senado.

Inara Fonseca: E pra fechar, você escreveu o primeiro livro em português sobre transfeminismo. Conta um pouquinho pra gente sobre ele? E qual você acha que é a importância de trazer esse debate pro espaço da universidade?

Jaqueline Gomes de Jesus: Transfeminismo, teorias e práticas. Primeiro livro em língua portuguesa sobre o tema que publiquei com colegas do Brasil e de Portugal. Ele foi fruto de discussões que já ocorriam no começo da década de 10 do século XXI. E que eu achava muito importante trazer da internet para a academia. Organizei no seminário Fazendo Gênero, de Florianópolis, em 2013, um debate, um simpósio temático e uma mesa redonda que eu participei. No simpósio foram enviados os trabalhos e uma parte desses trabalhos enviados compuseram o livro. Então, o livro veio de um convite dos melhores trabalhos, nem todos mandaram, mas os que mandaram foram publicados. E se tornou essa conjunção de trabalho e de reflexões sobre o que é transfeminismo na perspectiva do tupiniquim brasileira. Como nós trazemos um outro olhar sobre o que é o transfeminismo. Conscientes, na minha perspectiva, do feminismo negro que alimenta o transfeminismo e de que nós não estamos falando só de um feminismo pensado por e para pessoas trans. Na minha leitura, o transfeminismo fala de uma forma de ver o mundo que é herdeiro do feminismo negro, que dialoga com o feminismo lésbico e que aprende e que traz como herança o questionamento da objetificação dos corpos, da naturalização e da biologização da ideia de mulher, de homem. Que questiona a hierarquização de opressões e que dá um protagonismo para as falas, para as ideias de mulheres trans, travestis que vem há séculos resistindo a tudo isso. E que também considera a importância dos homens trans para repensar a masculinidade, incluindo, dos homens cis. E das mulheres trans, travestis para repensar a feminilidade, incluindo das mulheres cis. Dez anos depois surgiu outro livro sobre o transfeminismo, que é mais autoral. E temos visto frutos, né, ao longo dessas décadas.

Inara Fonseca

Inara Fonseca é pós-doutoranda no INCT Caleidoscópio. Doutora em Estudos Interdisciplinares de Cultura pela Universidade Federal de Mato Grosso (2019). Possui graduação em Comunicação Social (2009), com habilitação em Jornalismo, e mestrado Interdisciplinar em Estudos de Cultura Contemporânea (2012), ambos pela Universidade Federal de Mato Grosso.

fim de artigo
Ir para o topo