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Tecendo Direitos: Construindo uma Estratégia Nacional para Indígenas LGBTQIA+. Foto: Arquivo pessoal da autora.

Pensei nesse texto como um meio de “treinar a memória” para escrita, visto que terei que realizar minha pesquisa e escrever uma tese de doutorado. A partir de algumas experiências que fizeram e fazem refletir sobre a minha pesquisa, decidi escrever esse pequeno texto e para que este trabalho seja usado futuramente. O texto é pensado e escrito a partir de um seminário que aconteceu na minha aldeia em Mato Grosso. Entre os dias 20 à 23 de fevereiro de 2025, aconteceu na aldeia Meruri, município de General Carneiro, estado de Mato Grosso, o 1º Seminário Regional de Consulta, etapa Centro-Oeste, do projeto Tecendo direitos: construindo uma estratégia nacional para indígenas LGBTQIA+ e eu resolvi escrever sobre esse momento, que considero histórico.

A partir da postura contracolonial de Antônio Bispo, reflito alguns momentos dessa escrita. Em “A terra dá, a terra quer”, o autor discorre sobre o cantar dos pássaros, que pode variar de acordo com cada ocasião. Se o dia será de sol, nublado ou de chuva. Da mesma forma, observava na minha aldeia, se os pássaros cantavam para dar boas-vindas ou se algo negativo poderia acontecer em breve. Na aldeia é mais fácil ouvir o canto dos pássaros e suas diferenças, durante o dia e a noite, dos galos ao amanhecer o dia, o latir dos cachorros em diferentes momentos. Temos a capacidade de perceber a diferença entre esses sons de acordo com nossa cosmologia tradicional. Essas observações me fazem pensar e refletir também sobre os seres humanos. Se a partir de seus comportamentos estão nos recebendo e acolhendo ou não. Em alguns casos, não falar nada também são respostas para diversas perguntas e isso é dizer muito sobre essas pessoas. Muitas vezes, os cantos dos pássaros não estão em mesma sintonia.

Inicialmente gostaria de agradecer a tudo que nos rege e protege. Como poderia eu, na minha infância e adolescência imaginar que ajudaria a realizar um seminário sobre gênero e sexualidade em contexto indígena na aldeia Meruri/MT. Justamente na minha aldeia e na escola que estudei, onde enfrentei dificuldades em relação a minha orientação sexual e identidade de gênero naquele período. Sem poder ser eu de verdade. Volto agora, de cabeça erguida, sendo quem eu realmente sou e mostrando que podemos alcançar nossos objetivos. Há alguns anos era inimaginável pensar espaços que discutissem essa temática que ainda é considerada “recente” por parte da sociedade, mesmo que sempre existimos, antes mesmo do período colonial, de onde surgem essa negação a identidade de gênero e orientação dissidente, não cisgênero e não heterossexual. Como exemplo, trago TYBYRA. A primeira pessoa não heterossexual, possivelmente não cis, a morrer pelo que hoje chamamos de LGBT+fobia, registrado pela historiografia brasileira. A respeito desse nome, Juão Nyn pontua: Tybyra, indígena Tupinambá, executado por sodomia por soldados franceses preso à boca de um canhão em São Luís do Maranhão no ano de 1614 (2020, p. 05).

Acredito que foi um momento muito importante para nós enquanto “indígenas LGBTs” (as aspas correspondem a várias formas de identificação entre diferentes povos indígenas e em alguns casos, nem se identificam como indígenas lgbts, havendo outros termos tradicionais), momento de reflexão por tudo o que foi e está sendo construído até agora. E o que podemos esperar para o nosso futuro e o futuro das próximas gerações de indígenas LGBTs. O que está se construindo é também para que pessoas que não fazem parte da comunidade LGBT, nos entendam mais e consigam consequentemente, respeitar. Queremos enquanto pessoas LGBTs nos sentir bem, confortáveis entre pessoas heterossexuais e cis gêneros, não ficarmos somente na nossa bolha com pessoas do mesmo grupo social.

Pensar no contexto indígena, onde nós sejamos incluídas, que possamos caminhar junto das bases e lideranças em busca de melhorias e de nossos direitos, independente da área, seja saúde, educação, cultura, território, etc. Parece até hipocrisia, um grupo social estigmatizado pela sociedade, não aceitar que outro grupo social também estigmatizado queira reivindicar seus direitos e o direito à vida, as suas existências. Pois, também somos vítimas de um sistema que nos oprime, desde o processo de colonização, os mesmos que atacaram e atacam os indígenas, nos atacam, nos oprimem e de forma duplicada. Precisamos deixar de lado todo o tipo decolonização que nos foi imposto, é preciso agir de forma que não seja unilateral, pensar e repensar a partir da diversidade de povos existentes em Pindorama (Brasil).Pindorama, a partir do livro Aquilombamento da professora Luciene de Oliveira Dias “os povos tupis designaram o nosso país: Pindorama, ou terra das palmeiras ou terra livre dos males. Sua etimologia vem do tupi pindowa -, e é por essa etimologia que as pindowas rebrotam mais fortes após sucessivos golpes coloniais, inclusive nos milhares de quilombos” (2022, p. 17).

Precisamos falar sobre essas vivências outras que nos atravessam, a nossa luta não é a mesma. Visto que o Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTs no mundo, pelo 16° ano consecutivo em 2025, principalmente pessoas trans/travestis. Indígenas T, trans/travestis é como dizemos na língua do não indígena, mas em povos indígenas podem variar as nomenclaturas. A expectativa de vida dessas pessoas é de apenas 35 anos de idade, porque muitas são assassinadas, suicidadas ou morrem por complicações com hormônios ou cirurgias arriscadas. Mortes que não se enquadram muitas vezes em vidas de pessoas heterossexuais e cis gênero. Queremos ir e vir dentro de nossas aldeia se territórios, sem medo, sem imaginar que podemos ser violentadas por ser quem somos. Não queremos que os nossos povos ou outros povos que chamamos de “parentes”, nos tratem como o não indígena, como o branco. Com olhares preconceituosos, comportamentos discriminatórios, se não, é um sinal de que ainda estamos sendo colonizados.

Importante agradecer as pessoas da minha comunidade que aceitaram essa atividade, acredito que ainda estamos em processo de construção para uma convivência mais harmônica e também aos que não agradamos, pois sabemos que o preconceito, a discriminação ainda existem. Mas é justamente essa não aceitação que nos move a lutar cada dia mais em busca de uma vida mais digna, respeitosa e em busca dos nossos direitos. A partir de então, nunca mais as Assembleias, Encontros, Seminários, ATL, etc, não terão as nossas cores, estaremos sempre presentes, então é melhor irem se acostumando. Agradeço todas as pessoas envolvidas direta e indiretamente no seminário. Ao Danilo Tupinikim, do Coletivo Tybyra, que primeiro entrou em contato comigo e em seguida o Niotxarú Pataxó, Coordenador de políticas para Indígenas LGBTQIA+ do MPI. O cacique e liderança do TI Meruri, Osmar Rodrigues Aroenogwaijiwu, a diretora da Escola Sagrado Coração de Jesus, Adelina Ikuietaga,pela liberação dos espaços e a Andrya Kiga, secretária da escola, que esteve na infraestrutura. O companheiro de luta Erisvan Guajajara, da Mídia Indígena, que também há anos está à frente do movimento indígena, ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI), outros órgãos envolvidos, a equipe de cozinha e limpeza também foram fundamentais para que esse seminário acontecesse.

O seminário foi importante não somente por uma questão de realização pessoal, mas também pelo lado profissional, visto que a pesquisa do meu doutorado é relacionada a essa temática, que me atravessa enquanto indígena e travesti. Valeu muito a pena esperar até às 02:30 horas da manhã, horário em que o ônibus encosta na escola e eu vejo pessoas fundamentais na luta pelos direitos indígenas LGBTs e para a construção de um futuro mais digno para nossa população, na minha aldeia. Algumas pessoas eu já conhecia pessoalmente e tive contato a partir de movimentos sociais, como ATL e ENEI. Pessoas que conhecia apenas pelas redes sociais, mas que já tive algum contato e pessoas que ainda não conhecia e tive o prazer de conhecer e ter muitas experiências e trocas positivas, apesar dos poucos dias de seminário. Fiquei muito feliz em ver que o que estamos construindo há alguns anos está se fortalecendo, apesar de todas as dificuldades. Inclusive, logo pela manhã do primeiro dia, os convidados do seminário ficaram sem o café da manhã como o planejado, porém, esses contratempos não os desanimaram, pelo contrário, estavam muito empolgados com suas bandeiras, maracás, cores e cocares.

No primeiro dia de seminário, pela manhã, após a construção do espaço de realização do seminário e credenciamento, algo que me chamou atenção foi a apresentação cultural do povo Guarani/Kaiowá e Pataxó no território do povo Boe durante a abertura. Até então algo que não tinha acontecido, principalmente por não serem povos do estado de Mato Grosso. A apresentação de uma anciã do meu povo, moradora da aldeia Meruri também me traz um sentimento de felicidade. Ao se apresentar, até esqueceu de dizer o seu nome, mas disse: “eu vim conhecer vocês”. Acredito ser uma atitude fundamental em relação ao pré conceito, a partir do conhecimento, os seus conceitos são formados e no caso dela, de forma positiva. Em alguns momentos relaciono a discriminação entre a minha comunidade com o cristianismo, especificamente ao catolicismo na minha aldeia. Na maioria das vezes, essas pessoas de comportamento LGBTfóbico são pessoas que foram mais catequizadas pela igreja católica, que carregam princípios cristãos monoteísta e em alguns casos são pessoas mais velhas. Porém, no caso dessa anciã, houve uma inversão dessa visão, onde ela nos deu total apoio durante o seminário. Percebo atualmente uma aproximação maior com pessoas mais jovens que já cresceram nos conhecendo, em diálogo conosco, com a tecnologia e com a escola um pouco mais inclusiva, uma geração onde não temos muita preocupação com o preconceito.

Tecendo Direitos: Construindo uma Estratégia Nacional para Indígenas LGBTQIA+. Foto: Arquivo pessoal da autora.

Foi muito significativo a participação de uma pessoa que conhece a história do nosso povo, da nossa aldeia, melhor que outras pessoas. Esse apoio e acolhimento foi crucial para nós. Visto que muitas outras pessoas que poderiam participar não estiveram presentes, como pessoas que se dizem lideranças e professores, principalmente por serem seu local de trabalho. Poderiam ter mais pessoas da comunidade participando, porém, acredito que foi uma quantidade considerada baixa. Mas quem foi, fez a diferença. Outra fala que me chamou atenção nas apresentações foi de uma jovem e mãe, ela disse que queria repassar todo aprendizado obtido no seminário para sua filha, visto que o preconceito e negação pelas diferenças existem. Mas ela quer ensinar a filha a respeitar essas diferenças, respeitar as pessoas. Particularmente, essa fala foi muito importante no sentido de trazer resultados positivos para as próximas gerações. Gestos simples e singelos que fazem muita diferença para quem vive uma realidade totalmente contrária. Muitas vezes, eu só espero o pior das pessoas, então é muito gratificante colher esses resultados positivos. E em seguida, com muito entusiasmo iniciamos o seminário.

Após a abertura, iniciamos os debates, discussões, trocas, para que pudéssemos alcançar os objetivos do seminário. A nossa discussão não é somente sobre gênero e sexualidade, então também tivemos grupos relacionados a outros eixos temáticos. Grupos relacionados a cultura, visto que também temos as nossas particularidades; educação, pois também dependemos da educação de nossas aldeias e territórios; saúde, afinal também temos nossas especificidades, como a saúde de pessoas trans; território, que também é fundamental para nós, onde pessoas LGBTs também estão à frente da defesa desses territórios e em busca de melhoria para toda a comunidade, independente do segmento. E outros eixos de grupos de trabalho, como segurança, empregabilidade e renda. Eu escolhi o eixo da cultura, por ter uma certa proximidade e por ser o que mais me interessa. Durante manhãs e tardes, tínhamos esses momentos para pensar, discutir e apresentar nossas demandas coletivamente. Nos intervalos, durante o almoço e janta eram momentos de mais descontração, mas eram também momentos de trazer das salas as discussões. Momentos também de descanso, para ir tomar banho no rio, jogar vôlei, conhecer e conversar com a vizinhança, ver o centro cultural na missão, conhecer mais a aldeia, entre outras atividades.

Apesar de dizer anteriormente que não houve envolvimento no que diz respeito à comunidade no seminário, fora do espaço escolar e de nossas atividades, teve interações em momentos de descontração. Por seus motivos particulares, várias pessoas não participaram do seminário, mas na aldeia, fora da escola, muitas pessoas queriam conhecer, conversar com essas pessoas LGBTs que ali estavam. Acredito que se ficassem mais tempo, a interação seria maior e melhor. Em alguns casos, jovens participaram a partir de seus responsáveis, pelo incentivo. Acredito que a não participação de outros, seja pelo mesmo motivo ou por vergonha, pois não tem muito o costume de participar, independente da temática do evento. É perceptível que em outros espaços da aldeia, fora da escola, houve interação por parte da comunidade.

Seja durante a noite, no vôlei que acontece no ginásio da comunidade ou no banho de rio, onde conversas e olhares entre diferentes povos se encontravam. Foi um momento lindo e construtivo, na língua Guarani/Kaiowá falada durante momentos de lazer entre os meninos de Mato Grosso do Sul, onde pessoas do meu povo ouviam e se encantaram ao ver a beleza e cultura de outro povo. Enquanto a argila do rio estava no rosto, também estavam sorrisos estampados. Sorrisos e conversas sobre os mais diversos assuntos, onde demarcavam toda alegria e liberdade de ser quem somos. Hoje, sinto falta dos gritos de medo e aventura ao pular da ponte; das reclamações do calor incontestável de Mato Grosso e da distância até o rio, pois não conheciam o território; do espanto e admiração ao ver a cobra entrar em sua toca, ao voltar do rio; do medo do cachorro latindo e vindo em nossa direção; das conversas noturnas e aleatórias nas casinhas de palha em volta do campo de futebol; do aprender a dançar o lambadão durante o baile e dançar tão bem, por não saber os passos da cultura local; da senhora balançando a bandeira do arco-íris que ganhou durante o seminário em frente a sua casa quando estávamos partindo. Despedida muito simbólica para quem vive diariamente a recusa, o preconceito, a discriminação, de vidas estigmatizadas. Gritaremos por nossos direitos… a LGBTfobia, o racismo, o machismo não passarão mais no que depender das indígenas LGBTs brasileiras.

O preconceito, a discriminação contra mulheres, indígenas, LGBTQIA+ e outros grupos sociais estigmatizados pertence a cultura do colonizador, que em muitos momentos se vincula ao cristianismo, ao patriarcado, a heterossexualidade. Nascer e viver em uma cultura matrilinear, não cristã, me possibilita viver de forma mais digna. Cultura que é capaz de enfraquecer a fala e comportamento do colonizador. Se dizem que não podemos, não pertencemos, falamos e mostramos o contrário. A partir da nossa biointeração com a natureza, com o outro que também somos nós. Sinto cada vez mais próxima de mergulhar e encarar essa pesquisa. Se somos aceitas, respeitadas em nosso próprio sistema cultural/tradicional, não há motivos para querer se encaixar em outros moldes. A partir da convivência com meu povo e minhas amigas/interlocutoras, pretendo contribuir cada vez mais para que o nosso modo de vida seja visto por outras sociedades, seja por meio da universidade ou fora dela, na sociedade civil geral. Quem sabe, futuramente as pessoas saibam conviver melhor com essas diferenças que sempre existiram. Que diferentes culturas contribuam com essa sociedade que nos julga deforma negativa, para que ela se conserte, pois resistiremos.

Kiga Boe

Kiga Boe é indígena do povo Boe (Bororo), da aldeia Meruri, município de General Carneiro – MT. Imedu/aredu: homem/mulher ou “trans/travesti” a partir da perspectiva cultural tradicional do seu povo. Designer (UCDB), Mestra em Antropologia Social (UFMS) e Doutoranda em Antropologia Social (UFG). Uma das idealizadoras e cofundadora do Coletivo Tybyra (@indigenaslgbtq).

fim de artigo
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