
A ARANDU – Rede Colaborativa de Pesquisa Povos Indígenas, Gênero e Sexualidade surge em meados de 2024, a partir de um diálogo com a Coordenação de Política para Indígenas LGBTQIA+ do Ministério dos Povos Indígenas e tomando por base algumas discussões prévias do grupo de pesquisa Povos Indígenas e Política Global e do Núcleo de Pesquisa Gênero, Raça e Diferença na Política Internacional (NUGRAD), de onde vieram os primeiros colaboradores da Rede.
Com o propósito de fortalecer a construção de políticas públicas voltadas aos povos indígenas, a Rede se estrutura sobre uma perspectiva interseccional e transversal, reconhecendo que gênero, sexualidade, raça e etnia se entrelaçam de maneira complexa nas vivências de pessoas e comunidades. Conectada ao INCT Caleidoscópio (Nucleação Centro-Oeste) e seus pilares estratégicos, a Arandu emerge como um espaço de produção de conhecimento enraizado nas necessidades expressas pelos povos indígenas, seus coletivos e instituições parceiras.
Em Guarani, Arandu significa sabedoria ancestral, um saber vivo que floresce no diálogo, na escuta e na troca entre mundos, tempos e corpos. Arandu é a junção de duas palavras: ara que é o tempo/espaço, sem divisões; e ohendu que é ouvir. Assim, o Arandu constituiria na sabedoria que se aprende ouvindo o tempo/espaço (explicação oferecida ao grupo pelo antropólogo e indigenista Diógenes Cariaga, membro também da Rede). É essa a filosofia que orienta a Rede: cultivar saberes compartilhados, enraizados nos corpos-territórios e profundamente conectados com a luta por futuros mais justos, plurais e comunitários.
Entre os meses de outubro de 2024 e abril de 2025, a Rede Arandu consolidou importantes frentes de atuação, fortalecendo diálogos intersetoriais entre políticas públicas, movimentos sociais e saberes e práticas indígenas, com ênfase nas populações LGBTQIAPN+ e em processos de construção coletiva de metodologias de resistência e transformação social.
No âmbito das políticas públicas para populações LGBTQIAPN+ indígenas, a Rede Arandu tem desenvolvido uma articulação fundamental junto ao Ministério dos Povos Indígenas e ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, contribuindo para a implementação do programa Bem Viver +. Este programa tem como objetivo promover o fortalecimento de coletivos e de defesa dos direitos humanos das diversidades sexuais e de gênero das águas, do campo e das florestas. O projeto atua no enfrentamento dos índices de violência e agressões contra a juventude indígena e de casos de suicídio decorrentes do assédio e violência psicológica, especialmente entre os Guarani e Kaiowa. A partir dessa articulação, a Rede Arandu se integrou aos esforços de efetivação do programa na região Cone Sul do estado do Mato Grosso do Sul, destacando-se a parceria com a Universidade Federal da Grande Dourados, onde iniciativas locais vêm sendo fortalecidas por meio do acompanhamento ao coletivo da Juventude Indígena da Diversidade Guarani e Kaiowa (JUIND) em atividades de apoio técnico e metodológico.

Entre as ações realizadas estão o acompanhamento de visitas interministeriais, escutas à população, apoio ao planejamento e execução de oficinas para o diagnóstico e a formulação estratégias de mitigação de violação de direitos, discriminação e saúde mental que atingem as pessoas indígenas LGBQIA+ e suas comunidades.

Paralelamente, a Rede se engajou na criação e consolidação do programa Tecendo Direitos, uma ação interministerial liderada pelo Ministério dos Povos Indígenas, voltada para a proteção e a promoção dos direitos das populações indígenas LGBTQIAPN+. Desde o início do processo, a Arandu assumiu a responsabilidade pelo desenvolvimento da metodologia e pela organização dos grupos de trabalho, definindo as questões a serem abordadas e estruturando as relatorias das atividades. Até o momento, foram realizadas duas etapas regionais do Tecendo Direitos: a primeira na Terra Indígena Merure, localizada no estado do Mato Grosso; e a segunda no Ceará, na Terra Indígena Pitaguary, nos arredores de Fortaleza.
O 1º Seminário Regional de Consulta etapa Centro-Oeste, do Tecendo Direitos: construindo uma estratégia nacional para indígenas LGBTQIA+, aconteceu entre os dias 20 e 23 de fevereiro de 2025. Nesta primeira etapa, membros da Rede estiveram presentes, apoiando na organização e na relatoria dos debates, sugestões e propostas formuladas coletivamente pelas pessoas indígenas. Após o Seminário, tais membros trouxeram reflexões sobre o Seminário em reuniões internas, o que possibilitou a organização do grupo para planejar formas de apoiar mais efetivamente a organização e a realização das etapas seguintes. O Seminário possibilitou encontros entre pessoas do movimento indígena LGBTQIAPN+ que já se conheciam virtualmente e entre pessoas que ainda não se conheciam, promovendo redes e plantando sementes. Algumas lideranças locais e mulheres indígenas cis-heterossexuais especialmente respeitadas na comunidade também marcaram presença, simbolizando a abertura ao diálogo de parte da comunidade Boé-Bororo que habita a aldeia Meruri ao demonstrar interesse em conhecer e interagir com as pessoas LGBTQIAPN+ participantes do evento.

Já a etapa regional Nordeste do Seminário foi realizada entre os dias 20 e 23 de março, na aldeia Monguba. Pesquisadoras da Arandu fizeram a relatoria oficial do encontro e também apoiaram o desenvolvimento da metodologia aplicada no seminário, em que as discussões se organizaram em torno de temas considerados prioritários: Saúde; Educação; Cultura, Território e Segurança; e Empregabilidade e Renda. Essa participação é resultado de uma colaboração sólida entre a Coordenação de Política para Indígenas LGBTQIA+ do MPI e pesquisadoras associadas ao INCT Caleidoscópio, sediado na Universidade de Brasília

A participação no evento representou uma valiosa oportunidade de aprendizado para os membros da Rede, que puderam escutar e registrar, de forma direta, as demandas e perspectivas dos/das/des participantes, ampliando sua compreensão e aperfeiçoando suas estratégias de atuação em essa região do país. A próxima etapa está prevista para ocorrer em Porto Alegre, com o apoio de integrantes da Rede, que já vêm organizando a atividade junto à Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
O INCT Caleidoscópio apoiará na produção de um relatório analítico, no qual serão sistematizadas as reflexões, contribuições e propostas apresentadas ao longo dos Seminários, que ainda ocorrerão em diferentes regiões (Sul, Sudeste e Norte) e biomas. Esse documento terá um papel estratégico na formulação de políticas públicas nacionais direcionadas à garantia e à promoção dos direitos da população indígena LGBTQIAPN+.
Outro momento relevante foi a participação da Rede Arandu nas atividades do Acampamento Terra Livre (ATL), a principal e maior mobilização das organizações e movimentos indígenas no Brasil, que ocorreu nos dias 7 a 11 de abril de 2025 em Brasília. No ALT, contribuímos com a relatoria das discussões sobre as pautas indígenas LGBTQIAPN+ e atendemos uma demanda emergente do movimento: a criação de uma cartilha sobre indígenas LGBTQIAPN+ e as negociações climáticas nas COPs (disponível aqui). A cartilha, desenvolvida de maneira colaborativa junto ao Coletivo Tybyra, o Brasília Research Center – Rede Earth System Governance e o Grupo de Pesquisa em Relações Internacionais e Meio Ambiente (GERIMA-UFRGS), visa informar e fortalecer o protagonismo de indígenas LGBTQIAPN+ nas discussões internacionais sobre mudanças climáticas, em preparação para a COP 30.

Além da participação colaborativa no ATL, durante os dias do evento a Rede também se fez presente na audiência do coletivo JUIND com a Secretária Nacional de Políticas para a População LGBTQIA+, Sra. Symmy Larrat, ocasião na qual foi reafirmada a atenção prioritária que o MDHC tem prestado às demandas e necessidades de enfrentamento à LGBTQIAPN+fobia nos territórios Guarani e Kaiowa e o compromisso na defesa dos direitos humanos para essa população. Também estivemos presentes na sessão solene de lançamento do manual do programa Bem Viver + e acompanhamos a comitiva da JUIND na reunião junto ao Ministério das Comunicações em que foi oficializada a entrega de 60 computadores para os territórios em que o coletivo atua, ademais da apresentação de demandas por infraestrutura, conectividade e redes de telefonia móvel e de internet nos territórios.

A consolidação dessas frentes impulsionou a organização de um Curso de Relatoria Popular de Direitos Indígenas, com início previsto para maio de 2025. O curso tem como objetivo capacitar lideranças indígenas, especialmente LGBTQIAPN+, para atuarem em processos de documentação e denúncia de violações de direitos, com foco em metodologias críticas e descoloniais. Os encontros serão realizados mensalmente até agosto de 2025, preparando relatores para as próximas etapas do Tecendo Direitos, cuja fase final está marcada para ocorrer em Alter do Chão, em agosto.
Ainda, a Rede está organizando um ciclo de palestras e mesas redondas online, a ser transmitido através do Youtube do INCT Caleidoscópio, intitulado “Saberes Indígenas, Gênero e Sexualidade em Diálogo”, com o objetivo de compartilhar conhecimentos no tema para a comunidade acadêmica indígena, não-indígena e para a sociedade em geral.
Desde seu surgimento, a Rede Arandu expandiu suas ações e consolidou parcerias estratégicas, engajando mais de 50 pessoas em um trabalho colaborativo distribuído em diversas regiões do Brasil. A lógica do trabalho coletivo tem sido central para o fortalecimento das iniciativas, garantindo que as metodologias desenvolvidas reflitam as necessidades e os saberes dos territórios indígenas. Essa experiência reafirma o compromisso da Rede com a construção de práticas políticas emancipatórias, enraizadas no respeito à diversidade e na valorização dos saberes ancestrais.
Referências Bibliográficas
HILL COLLINS, Patricia. Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2022.
LEYVA, Xochitl & SPEED, Shannon. “Hacia la investigación descolonizada: nuestra experiencia de co-labor” em FLACSO Guatemala, 2008. pp. 34-59.
SEGATO, Rita Laura. La crítica de la colonialidad en ocho ensayos y una antropología por demanda. Buenos Aires: Ediciones Prometeo, 2013.
TUHIWAI SMITH, Linda. Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas. Tradução de Roberto G. Barbosa. Curitiba: Editora UFPR, 2018.

Flávia Belmont é Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio. Tem pesquisas e publicações especialmente em temas de gênero, sexualidade, raça e identidade, teorias queer, migrações e refúgio. Atualmente, é integrante da Rede Colaborativa de Pesquisa Arandu – Povos Indígenas, Gênero e Sexualidade, vinculada ao INCT Caleidoscópio UNB, onde faz pesquisa-ação.

Sebastián Granda Henao é migrante colombiano, residente no Brasil há 15 anos. Atualmente é professor visitante no programa de pós-graduação em Fronteiras e Direitos Humanos na UFGD. Doutor em Relações Internacionais pela PUC-Rio. Membro da Rede Arandu e do Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado. Sua pesquisa procura estabelecer nexos entre as reivindicações da diversidade e dissidência sexual e de gênero e as lutas por terra e território nos contextos de conflito socioambiental no Mato Grosso do Sul, especialmente junto ao coletivo Juventude Indígena da Diversidade das etnias Kaiowa e Guarani.

Tchella Maso é Pesquisadora e educadora feminista. Atualmente, é professora na Universidade de Brasília; doutora em Estudos Feministas e de Gênero pela Universidade do País Basco (UPV/EHU) e coordena a Rede “Povos Indígenas, Gênero e Sexualidades”. Sua pesquisa e atuação concentram-se em temas como feminismos, gênero, sexualidades, interseccionalidades, corpos, afetos, espiritualidades e pós-secularismo, com uma forte ênfase na análise crítica das dinâmicas de poder e agência no contexto da política global.
