O Disque 100, principal canal de denúncias de violações de direitos humanos no Brasil, constitui uma das poucas fontes públicas que permitem acompanhar a evolução das notificações envolvendo populações historicamente vulnerabilizadas. Desde 2011, o sistema passou a registrar informações relacionadas à orientação sexual e identidade de gênero, incluindo violações contra pessoas LGBT enquanto grupo vulnerável específico.
A partir de uma análise parcial feita para os anos entre 2011 e 2025 – neste último ano, contando-se apenas os dados para o primeiro semestre -, sobre violências contra pessoas LGBT (sigla utilizada para os registros), alguns padrões sobre as notificações de violências contra pessoas indígenas são perceptíveis, apontando caminhos para esforços de pesquisa qualificada e quantitativa acerca das dinâmicas específicas de violências que atingem pessoas indígenas LGBT, seja em contexto aldeado ou urbano. A análise dos registros entre 2011 e 2025 aponta que as denúncias referentes a pessoas indígenas LGBT representam uma fração mínima dentro do total de notificações envolvendo a população LGBT em geral. Em praticamente todos os anos, o percentual de indígenas LGBT não ultrapassa 1% do total de registros em face das categorias raciais disponíveis nas tabelas classificatórias do Disque 100, que replicam a classificação do IBGE: preta, parda, amarela, indígena e branca. Apesar da baixa representação em termos absolutos, essa porcentagem gira em torno do percentual total da população indígena no Brasil, que é de 0,8% em relação aos outros segmentos raciais, segundo o último censo do IBGE 1 (IBGE, 2022).
Gráfico 1:

Há pequenas variações ao longo dos anos, mas a porcentagem de pessoas LGBTs racialmente categorizadas como indígenas não passa de 1,75%, como registrado em 2024. A média desses valores é de 0,57%, o que indica que, considerando a população indígena como 0,8% do total da população brasileira, há uma desproporção negativa de registros de denúncias por parte de vítimas indígenas LGBT. Vale destacar que, além da categoria racial, há também a classificação étnica, que passou a constar no Disque 100 apenas no ano de 2020. Ainda assim, essa classificação tem sido subutilizada, já que os dados em sua imensa maioria não são preenchidos (“null”), e, quando o são, a classificação padrão de etnia é “povos indígenas”, tornando o dado redundante e impreciso.
A média de 0,57% de registros de violências contra indígenas LGBT é moderadamente mais baixa que a proporção da população indígena em relação aos habitantes do Brasil no total (0,8%). Mas mais alarmante a repetição do registro das denúncias por parte deste segmento. As mesmas denúncias, no mesmo dia, horário e localização, se repetem diversas vezes, o que indica problemas de acesso pela provável repetição das ligações, mas também outros problemas ainda não identificados e, sobretudo, uma inflação dos dados sobre violência contra a população indígena LGBT. Abaixo, o gráfico indica a porcentagem de repetições para cada ano, onde em 2024 mais de 90% dos registros feitos são repetidos, o que significa que menos de 10% dos registros desse ano são distintos entre si. A partir de 2020, todos os registros apresentam acima de 60% de repetições por ano.
Gráfico 2:

Essa baixa incidência não deve ser interpretada como ausência de violações, mas como um indicativo de subnotificação e barreiras de acesso aos canais de denúncia. Entre os fatores que contribuem para esse cenário estão: a limitação do alcance territorial do Disque 100, ainda restrito a contextos urbanos e com cobertura precária em territórios indígenas; as barreiras linguísticas e culturais que dificultam a comunicação direta com o serviço; a falta de treinamento específico das equipes terceirizadas de atendimento telefônico (Medeiros, 2014) para identificar e registrar corretamente a origem étnico-racial das pessoas atendidas, as questões territoriais próprias de autoridade política indígena, dentre outros aspectos que vêm sendo estudados por pesquisadoras do INCT.
A isso, soma-se a dificuldade de identificação de protocolos e fluxos de resposta às violências, objetivo que deve ser central para os mecanismos de denúncia. Mesmo nos casos em que haja intercedência dos Centros de Referência LGBT para acolhimento e proteção das vítimas, é comum que as questões próprias às identidades, culturas e à continuidade dos protocolos para a segurança da vítima em contextos indígenas sejam enfrentadas com desconhecimento ou incapacidade institucional de acolher de maneira apropriada, como tem sido relatado por pessoas indígenas em diversos eventos e encontros políticos, tais como os Seminários Regionais Tecendo Direitos, onde se consulta a população indígena LGBTQIA+ com vistas à criação de uma Estratégia Nacional de Políticas Públicas para este público-alvo.
Os dados do período de 2011 a 2025, ainda que limitados, tornam visível um processo histórico de exclusão estatística e simbólica. Ao mesmo tempo, sinalizam que, onde há registro, há também movimento, resistência e busca por reconhecimento. Em última instância, observar a presença, ainda que mínima, de indígenas LGBT nos bancos de dados do Disque 100 é reconhecer que essa visibilidade, mesmo restrita, representa um ponto de inflexão importante na luta por direitos e no reconhecimento da existência de identidades de gênero e orientação sexual múltiplas dentre pessoas indígenas, o que é um passo para o debate sobre dados populacionais para o embasamento de políticas públicas. Reconhecer a existência de pessoas indígenas LGBT, como comentado nesta publicação, é fundamental para fortalecer a luta dos coletivos em torno dos direitos de gênero, sexualidade e do bem-viver.
Referências Bibliográficas:
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Demográfico 2022: identificação étnico-racial da população, por sexo e idade – Resultados do universo. Rio de Janeiro: IBGE, 2023. Tabela 3 – População residente por cor ou raça e total de pessoas indígenas, segundo as Unidades da Federação – Brasil – 2022. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?id=73105&view=detalhes. Acesso em: 11 nov. 2025.
MEDEIROS, Matheus de Sousa. Disque 100: uma análise da eficácia ao longo do tempo. 2014. 61 f., il. Monografia (Residência em Gestão de Políticas Públicas) — Universidade de Brasília, Brasília, 2014.
